quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Previsto para quando ou para quê?

O tema de hoje é a análise de uma estrutura sintática que se tem tornado corrente nos textos da imprensa. Trata-se de certo uso da forma "previsto", particípio passado do verbo "prever".

Garantir a credibilidade da informação é preocupação primordial nos veículos da grande imprensa e, por esse motivo, ao transmitir determinadas notícias, é preciso, muitas vezes, recorrer a recursos de atenuação. Em outras palavras, o jornal não pode endossar aquilo que é fruto de declaração ou que constitui promessa feita por alguém. Até mesmo a data de estréia de um espetáculo pode ser objeto de alguma dúvida. Daí a saída usada pelos jornalistas: informa-se que se trata de uma data "prevista". Até aí, não há problema.

A questão está no modo como se tem usado o termo. Consideremos o seguinte parágrafo: "No encontro, foi explicado aos parlamentares como funcionaria o mecanismo negociado com o Fundo. O acerto com o FMI deve ser incluído no relatório final de Jucá, previsto para ir a votação depois de amanhã na Comissão de Orçamento". De acordo com o texto, o que está previsto é "o relatório". E é exatamente aí que reside a estranheza da construção. Afinal, como compreender que algo nomeado por um substantivo concreto (um relatório, por exemplo) esteja "previsto"? Como pode um objeto estar previsto? Na verdade, não é o relatório que está previsto, mas a sua votação (ou a sua ida a votação).
Prever é ver antecipadamente. A própria idéia contida na ação de "prever" inscreve-se no tempo: algo está previsto para algum momento. Daí a necessidade de um complemento circunstancial (adjunto adverbial) de tempo após o verbo. Quando se diz que algo está previsto, a pergunta do ouvinte é "para quando?", não "para quê?".

Assim, uma redação alternativa para o trecho acima seria a seguinte: "O acerto com o FMI deve ser incluído no relatório final de Jucá, cuja ida a votação na Comissão de Orçamento está prevista para depois de amanhã". Outra formulação possível seria esta: "O acerto com o FMI deve ser incluído no relatório final de Jucá, que, provavelmente, irá a votação depois de amanhã na Comissão de Orçamento". Há diversas possibilidades de redigir o texto usando atenuantes. Os advérbios de dúvida (talvez, possivelmente, provavelmente), bem como os verbos auxiliares "dever" e "poder" são próprios para esse tipo de situação.

O uso da construção "previsto para" + infinitivo, entretanto, parece vir ganhando cada vez mais terreno na linguagem jornalística. Vejamos mais um caso: "Previsto para ser inaugurado no dia 25 de janeiro deste ano, aniversário de 450 anos de São Paulo, o auditório foi alvo de uma ação do Ministério Público Estadual". Nesse fragmento, está dito que um auditório estava "previsto para ser inaugurado" no dia 25 de janeiro. Ora, a inauguração do auditório é que estava prevista para o dia 25 de janeiro. O "auditório" é um substantivo concreto, a "inauguração" é um substantivo abstrato. Essa informação pode conter uma pista para o tratamento do problema.
Substitui-se o substantivo abstrato (que torna a construção mais econômica) por uma forma verbal que atua como complemento do particípio "previsto". No trecho acima, o substantivo abstrato "inauguração" foi trocado pela forma verbal "ser inaugurado", fazendo surgir, dessa maneira, uma relação artificial de complementaridade.

O problema é que não conseguimos levar a termo a tarefa de construir uma frase com essa regência usando uma forma finita do verbo. Não se ouve, por exemplo, uma sentença como "Ele previu para ser inaugurado o auditório no dia 25 de janeiro". O que se ouve, em lugar disso, é o seguinte: "Ele previu para o dia 25 de janeiro a inauguração do auditório" ou "Ele previu que o auditório fosse inaugurado no dia 25 de janeiro". Ora, se assim é, passemos para a voz passiva essas frases e obteremos estas: "Foi prevista (por ele) para o dia 25 de janeiro a inauguração do auditório" e "Foi previsto (por ele) que o auditório fosse inaugurado no dia 25 de janeiro". Dessa maneira, encontramos as construções que, de fato, exprimem a idéia pretendida.

Vejamos mais um exemplo: "O corpo do atacante Cristiano Júnior, morto no dia 5 de dezembro (...) e previsto para chegar na madrugada de hoje a Brasília, passará por segundo exame necroscópico no IML da capital federal nesta manhã". Do modo como está formulado o trecho, "o corpo está previsto para chegar na madrugada de hoje a Brasília". Novamente o substantivo concreto tomou o lugar do abstrato. Sabemos, todavia, que o que está previsto não é o corpo (substantivo concreto), mas uma ação (que deve ser expressa pelo substantivo abstrato, não pelo verbo). Assim: "A chegada [substantivo abstrato] do corpo a Brasília está prevista para a madrugada de hoje". Outra possibilidade seria esta: "Está previsto que o corpo chegue a Brasília na madrugada de hoje". Nessa construção, o sujeito de estar previsto é uma oração ("que o corpo chegue a Brasília na madrugada de hoje") que tem o valor de um substantivo ("que o corpo chegue" = "a chegada do corpo").
Como parece ter "entrado na moda", o termo "previsto", às vezes, acaba sendo empregado sem muita propriedade. Veja o que ocorre neste caso: "O texto que vai para a sanção também causará um conflito com a Monsanto. Com as mudanças, ficou previsto que, para cobrar royalties, deve ser comprovada com nota fiscal a venda das sementes". Nesse caso, melhor seria dizer que ficou "acertado", "tratado", "ajustado", "acordado" --afinal, tudo indica que se trata não de previsão, mas de acordo.

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