quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

"Mesmo se" ou "mesmo que"?

"Mesmo se encontrasse um emprego fixo não ganharia mais de 150 libras por mês; aqui dou 18 ao guardião e estamos seguros. Viver com os mortos é a única solução."

A frase que lemos acima foi extraída de inusitada notícia publicada no diário espanhol "El País" e, traduzida para o português, em uma das páginas eletrônicas do UOL. Relata o jornalista que a situação crítica em que se encontra o sistema habitacional do Egito levou considerável quantidade de pessoas a fixar moradia em cemitérios.

Do ponto de vista gramatical, o texto tem interesse em razão do emprego, bastante freqüente na imprensa, da seqüência "mesmo se" no lugar da locução conjuntiva "mesmo que". As conjunções e as locuções conjuntivas, ao lado das preposições e das locuções prepositivas, respondem pelo estabelecimento de coesão entre as orações de um período e entre os períodos de um texto. Em outras palavras, são esses elementos que garantem a expressão clara das relações entre as partes de um texto.

A locução "mesmo que" exprime a idéia de concessão, ou seja, de aceitação de uma situação que, em geral, se contrapõe àquela considerada a principal na hierarquia do pensamento. Um exemplo pode ajudar a compreender a questão: "Mesmo que haja poucos ouvintes, o discurso será proferido". A idéia principal é que "o discurso será proferido"; a idéia secundária (subordinada à principal) é que pode haver poucos ouvintes. Tal possibilidade, entretanto, não impede a execução da ação principal. Essa é a relação de concessão, expressa também pela conjunção "embora" e pela locução "ainda que".

Convém lembrar aqui que todas as locuções conjuntivas terminam com a conjunção "que" (à medida que, desde que, se bem que, uma vez que, à proporção que etc.). No texto, o que encontramos é "mesmo se". De onde vem esse "se"?
Convém lembrar aqui que todas as locuções conjuntivas terminam com a conjunção "que" (à medida que, desde que, se bem que, uma vez que, à proporção que etc.). No texto, o que encontramos é "mesmo se". De onde vem esse "se"?

A conjunção "se" que se infiltra nessa construção é, ao que tudo indica, aquela que deveria exprimir condição (subordinativa condicional), comum em frases do tipo: "Se houver poucos ouvintes, o discurso não será proferido", em que a idéia contida na oração principal ("o discurso não será proferido") depende daquela contida na subordinada ("se houver poucos ouvintes") para realizar-se.

A expressão "mesmo se" do fragmento que encabeça este texto parece ser o resultado da fusão da concessiva com a condicional. A ocorrência aparentemente sintetiza duas idéias: a de concessão propriamente dita (ainda que arranjasse um emprego fixo, não poderia deixar o cemitério) e a de condição (se encontrasse um emprego fixo, não ganharia mais que 150 libras, ou seja, seu salário seria insuficiente para custear uma moradia convencional). A relação entre essas duas idéias, todavia, é mediada por uma idéia de causa.

Analiticamente, teríamos o seguinte: (1) Ainda que arranjasse um emprego fixo [concessão], não poderia deixar o cemitério. (2) Se encontrasse um emprego fixo [condição], não ganharia mais que 150 libras, ou seja, seu salário seria insuficiente para custear uma moradia convencional.

A idéia contida em (2) é causa daquela contida em (1). Assim, desdobrando o raciocínio, teríamos o seguinte: Ainda que arranjasse um emprego fixo, não poderia deixar o cemitério porque, se encontrasse um emprego fixo, não ganharia mais que 150 libras por mês, ou seja, seu salário seria insuficiente para custear uma moradia convencional.
O redator usou a seqüência "mesmo se" para introduzir uma oração subordinada concessiva ("Mesmo se arranjasse um emprego fixo") e tomou como sua principal a oração que se vincula a uma idéia de condição ("não ganharia mais que 150 libras por mês..."). Daí a impressão de haver um salto, de ter o redator queimado uma etapa de raciocínio.

No período resultante do desdobramento do raciocínio, encontramos a repetição da idéia de arranjar um emprego fixo (essa idéia participa de duas formulações, uma de caráter concessivo [Mesmo que arranje um emprego fixo, não pode deixar o cemitério] e outra de caráter condicional [Se arranjasse um emprego fixo, não ganharia mais que 150 libras] ). Como a idéia de concessão é mais forte, é a condição que deve ser retirada, mantendo-se subentendidos os seus traços semânticos.

Vemos, assim, que, para estabelecer as relações necessárias entre as partes do texto, era mais importante acrescentar a conjunção causal (porque) que explicitar a condicional (se) de um raciocínio que pode ficar subentendido. Para reformular o texto, fica a sugestão para que se explicite a idéia principal, antes subentendida (a pessoa não poderia deixar o cemitério), e se introduza o nexo causal, como se pode ver abaixo:

Mesmo que encontrasse um emprego fixo, não poderia deixar o cemitério porque não ganharia mais de 150 libras por mês; aqui dou 18 ao guardião e estamos seguros. Viver com os mortos é a única solução.

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